Quando os Bacalhaus Não Estavam em Extinção
Sou um moderado. Pertenço àquele grupo que coloca a ponderação em primeiro lugar. Um grupo que cada vez mais caminha a passos largos para a extinção, como os bacalhaus. Ser moderado hoje em dia exige alguma coragem - o tipo de coragem moderna: nada que coloque a integridade física em risco (até porque, acabei de dizer, coloco a ponderação em primeiro lugar). A moderação nos dias de hoje é o lugar onde os pés mais queimam. A sociedade vive para destruir o ponto de vista contrário. É uma constante contenda onde nada se constrói, como é próprio de qualquer contenda. Um moderado é visto como uma espécie de comuno-fascista. Os moderados são atacados pelos dois lados de forma intensa. O apelo para nos abrigarmos num dos lados da barricada é muito forte. É mais sedutor ser nós contra eles do que nós contra todos.
O advento das redes sociais mudou, temo que para sempre, o espaço público. Antes, o espaço público era praticamente igual para todos. Era um jogo de um tabuleiro só. Hoje em dia, os algoritmos oferecem-nos uma visão totalmente parcial da realidade. Há vários tabuleiros ao mesmo tempo e nós só vemos alguns. Foi isso que fez com que no Reino Unido tenhamos encontrado votos a favor do Brexit de amantes da caça e de animalistas: interesses completamente opostos, mas ambos com a crença de que a saída da União Europeia serviria melhor a sua causa. Um paradoxo apenas possível por aquilo que os algoritmos lhes davam a ler. Quando o espaço público era apenas um, pessoas com ideias semelhantes votavam de forma semelhante. Hoje em dia, pessoas com pensamentos radicalmente opostos, muitas vezes, votam da mesma forma. O apelo é sempre o mesmo: vota em mim e eu ajudo-te a destruir os outros. Isto dito a todos. É a isto que chamam polarização.
Sou de uma família católica e fui criado com esses valores. Hoje em dia não pratico qualquer religião. Mantenho-me um moderado no meio do debate dos que acreditam cegamente em tudo o que a Igreja diz e que esse é o caminho da salvação e os que acham que a Igreja não serve para nada. Os fanáticos têm sempre uma coisa em comum: querer impor aos outros a sua forma de viver e isso não foge à regra neste debate. Em ambos os lados. Não acredito em Humanidade sem espiritualidade. Seja sobre a forma de uma religião ou noutra qualquer expressão. Ridicularizar a crença Católica com base na impossibilidade de alguém andar sobre a água, curar leprosos sem cuidados médicos ou transformar água em vinho é pensar no assunto de forma simplista. É tão improvável que assim seja como a posição dos astros no momento do nosso nascimento ter alguma influência na nossa vida e em quem somos, tão improvável como achar que manifestar determinado desejo nos coloca mais próximo de o alcançar ou tão improvável como determinadas superstições e a influência que podem ter nos nossos destinos, apenas para dar alguns exemplos. As crenças são-no precisamente porque não são possíveis de provar. Se o fossem, chamar-se-iam Ciência. Dito isto, não é, pois, um duelo sobre quem tem factualmente razão, mas sobre o impacto e importância que a religião e, neste caso, o Catolicismo em particular podem ter no Mundo.
Acompanhei as Jornadas Mundiais da Juventude e não pude deixar de registar com agrado, da perspectiva de quem não pratica nenhuma religião, a mensagem de abertura, inclusão, esperança e paz que foram veiculadas. Se o Catolicismo existe, acreditemos ou não, que exista para fazer do Mundo um lugar melhor. Uma mensagem simples e que deveria apelar a todos. Quem não é Católico tem o direito de exigir da Igreja na sua dimensão social. Se é criticável a gestão que a Igreja fez dos casos de abuso (que, já agora, não foram perpetrados pela Igreja Católica, como diziam os cartazes, mas por elementos da Igreja. Não é apenas uma nuance semântica), deveria ser legítimo e até fácil aceitar o impacto positivo destas mensagens. Infelizmente, muito daquilo que vi, até em jornais, foi muitas pessoas a tentar reduzir as Jornadas a palavras e acções despropositadas de uma ínfima minoria do milhão e meio de peregrinos que estiveram presentes no evento. Haverá sempre maus Católicos e Católicos maus, mas não foi esse o caminho que a Igreja disse querer cumprir. Se na sociedade houvesse menos polarização e mais vontade de construir, era possível aceitar que a prática do Catolicismo não é uma agressão em si a quem não acredita. Registei um fenómeno semelhante ao que acontece no Dia dos Namorados: muitos solteiros sentem-se vulneráveis e, atacados até, nesse dia. Apenas porque não fazem parte. No caso das Jornadas, não fazer parte é uma opção nossa. Não há qualquer razão para nos sentirmos excluídos. Afinal de contas, são as nossas crenças. A felicidade dos outros nunca deveria ser razão para nos causar qualquer espécie de mal-estar. Por mais inverosímil que possamos considerar a razão da felicidade de alguém, nunca esqueçamos que o outro está a ser feliz enquanto nós estamos a perder tempo a julgá-lo.
Continuo a não praticar nenhuma religião, mas gostei de ouvir o Papa e ver tantas pessoas felizes e a viver o evento com tanta intensidade tão perto de nós. Infelizmente, hoje em dia, isto parece ser cada vez mais um paradoxo. Tenho esperança de que um dia seja possível não viver o espaço público como uma luta pela sobrevivência dos nossos pontos de vista e a nossa vida não se gaste num eterno desejo de afirmação. Talvez nesse dia, seja mais fácil deixarmos de nos sentir atacados e culpados por todos os males do Mundo. Talvez nesse dia os bacalhaus deixem de estar em extinção.