Nanette
Nanette é um bom espectáculo de stand-up até que o deixa de ser e passa a ser uma dissertação de Hannah Gadsby, sem o intuito de ter graça, sobre os direitos lgbt, feminismo e todos esses assuntos que normalmente vêm no mesmo pacote. Concordo com muitas das coisas que são ditas, mas decidi apenas debruçar-me sobre aquelas com as quais discordo:
1- É feita uma representação das minorias como sendo constituídas por seres complexos e com várias camadas. O homem branco heterossexual é sempre retratado como básico. Por mais grotesco que alguém possa ser, esse alguém também tem várias camadas e também é revestido de complexidade. Nesse sentido, há uma incoerência em criticar a estereotipização das minorias falando no "homem branco heterossexual" como se fosse um ser único e de apenas uma personalidade. Um exercício que me pareceria interessante seria o de ver estas mulheres brancas que falam sobre o domínio do homem branco heterossexual falar sobre o domínio das mulheres brancas sobre as mulheres negras ou até mesmo sobre o homem negro. Infelizmente, nunca acontece. Não está em causa o altruísmo de um Mundo mais justo, mas o egoísmo dos seus próprios direitos. Legítimo, mas egoísta.
2- Hannah Gadsby diz que a comédia autodepreciativa que sempre praticou faz com que a tensão sobre um assunto tão sério seja aliviada e, portanto, está na altura de parar de fazer comédia, pois temos de sentir essa tensão. A dada altura ela diz que tem vergonha dela própria. Na minha opinião, o grande problema reside no facto de Hannah nunca ter conseguido arranjar uma forma de reduzir a sua própria tensão e isso nada tem a ver com a tensão dos outros ou com a comédia. Um Mundo sem gargalhadas ou sorrisos porque "há assuntos que são demasiado sérios para nos rirmos" é sempre um Mundo pior. O mal nunca estará nas piadas sobre os problemas, mas sim nos problemas em si.
3- A passagem em que fala do quão cretino era Picasso foi das que mais me chocou. Não por ser Picasso ou por ter uma grande convicção em relação ao valor humano ou artístico do pintor. Também não pelo facto de achar que o cubismo é um contributo maior para a Humanidade do que os aspectos mais negros da vida de Pablo Picasso. Aquilo que me parece evidente é que não se pode julgar a História com os olhos de 2018. O Padre António Vieira era a favor da escravatura. Muitos outros artistas foram boémios e conhecidos pelos seus excessos e alguns até de índole humana bastante duvidosa mesmo para a data. Se seguirmos esta linha de raciocínio, séculos de arte e cultura terão de seguir directos para a fogueira. A História é um encadeamento de sucessos e não se pode ignorar as aprendizagens e evoluções apenas por uma determinada particularidade com a qual discordamos e que é reflexo da sociedade da época. Devemos pegar nisso para aprender e não repetir erros. Outra forma de pensar (em nome do esclarecimento) nada mais será do que um atalho para a ignorância.
4- O que pensar do altruísmo de uma pessoa que diz que apenas quer que a sua história seja ouvida e cobra bilhetes e vende a sua oratória à Netflix para que seja transmitida em todo o Mundo?