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605 Forte

O meu Mundo frase a frase. Ironia e sarcasmo usados sem aviso prévio.

Justiça Divina

por F., em 03.08.17

Titubeou na direcção da luz ao fundo do túnel. Do lado de lá estavam duas portas. Ao meio aparecia diante de si uma secretária colocada em cima de um estrado. Sentado a essa secretária estava S.Pedro com uma pena na mão e um livro em formato A2 à sua frente.

- Bom dia - cumprimentou o homem a santidade - por acaso, sabe-me dizer onde estou?

 

- Está às portas do céu. Não faz ideia de quem sou? - disse S.Pedro erguendo as sobrancelhas.

 

- Suponho que seja o S. Pedro... Isso quer dizer que eu morri? - questionou o homem quase em tom de lamento.


- Precisamente - respondeu o santo com indiferença.


- Em qual das duas portas é a casa de banho? - provocou o homem.

 

- Como ousa? - vociferou o santo.

 

 Pode estar o leitor a estranhar o tom pouco católico do santo. Peço, no entanto, alguma compreensão. S.Pedro tem este trabalho há cerca de dois mil anos. Não será necessário que eu explique o desgaste que provoca lidar com o público. Durante estes anos, encontrou todo o tipo de pessoas ali. Ouviu todo o tipo de reclamações. Penso que podemos conceder que, neste caso, a tarefa até tira a paciência a um santo. E recordo, uma vez mais, que estamos a falar de dois mil anos. Com a agravante de à sua frente ter a eternidade sem qualquer hipótese de progressão de carreira. Acima de santo só mesmo Deus e o lugar já está ocupado e, diria eu, assim se manterá durante algum tempo.

 

 

Poderá o leitor também estar a estranhar o tratamento formal entre o santo e o homem. Parece-me evidente que, quando estamos na presença de um santo, o devemos tratar por "você". Pelo papel que desempenha e também por respeito à idade. No caso do santo, o tratamento "você" pareceu-me adequado por uma questão de qualidade no atendimento ao cliente. 


- Peço desculpa, mas disse que estamos às portas do céu. Pensei que a outra porta fosse uma casa de banho. Eu venho do túnel, andei muito e demorei a chegar cá. Já para não falar que morri por afogamento. Preciso mesmo de uma casa de banho - defendeu-se o homem.

 

 

- Há duas portas porque este é o dia do seu Juízo Final. Uma das portas dá acesso ao Céu; a outra dá acesso ao Inferno. Normalmente, fazemos uma revisão ao seu percurso na Terra, ponderamos as suas boas acções e os seus pecados, os seus defeitos e as suas virtudes e chegamos a uma decisão. Confesso que estou bastante tentado a mandá-lo rapidamente para o Inferno depois de toda esta conversa - retorquiu S.Pedro voltando à indiferença.

 

- Mas qual é a razão da pressa? Não temos eternidade à nossa frente? - inquiriu o homem.

 

 

- Chega de graças. Dê-me uma razão para não o mandar imediatamente para o Inferno - afirmou a santidade autoritariamente.

 

 

- Só falo na presença do meu advogado - exigiu o homem.

 

 

- Não posso chamar o seu advogado. Teria de morrer primeiro - clarificou S.Pedro.

 

 

- Pois então que assim seja - manteve-se firme o homem.

 

 

- Volto já. Não saia daqui - pediu o santo.

 

Não consigo ter a certeza absoluta sobre aquilo que S. Pedro foi fazer. Tendo em conta a música com violinos de espera que ficou a acompanhar o homem, eu arriscaria dizer que S. Pedro foi conferenciar com o seu supervisor: Deus.

 

 

Alguns instantes volvidos, S.Pedro voltou a sentar-se na sua cadeira e não disse palavra até que, de repente, surge alguém engravatado com ar espantado e, claramente, a não perceber onde estava.

 

 

- Ora bem. Já aqui está o seu advogado. Informo-o de que estamos perante o Juízo Final do seu cliente. Como ele não falava sem ser na sua presença, tivemos de o chamar. Retomando então, volto a pedir que me dê uma razão para não ir para o Inferno - insistiu S.Pedro.

 

 

- Meríssimo, o meu cliente sempre foi honesto e sempre revelou ter bom coração em vida. Parece-me razão suficiente para ir para o Céu - atirou o advogado.

 

 

- Desde que aqui chegou que o seu cliente tem feito troça da Instituição Divina. Com este comportamento, de que forma é que lhe posso conceder o Céu? - perguntou a santidade.

 

 

- Meritíssimo, o meu cliente é ateu - declarou firmemente. Depois de uma pausa retomou - Ou pelo menos isso era o que nós achávamos. Neste momento está diante dos seus olhos que não tem razão e o facto de manter a postura só prova que é tolo. Sendo tolo a sua condição, peço ao Meritíssimo que o considere inimputável. Não tem qualquer responsabilidade sobre os juízos de valor que faz - argumentou o advogado.

 

 

- Isso é mesmo verdade? Recordo que está sob juramento! - disse o santo ameaçando o homem.

 

 

- Sim - respondeu peremptoriamente o homem.

 

 

- Assim sendo, e um pouco contra a minha vontade, declaro que pode ir para o Céu - declarou S. Pedro, batendo de seguida com o martelo na secretária. Depois, carregou num botão e as portas do Céu abriram. Hoje em dia é tudo tecnológico. Até nas Portas do Céu. Antigamente, nos inícios de S.Pedro, tinha de se levantar para ir abrir a porta. Às vezes esquecia-se da chave lá dentro e ficava trancado do lado de fora. Agora era bastante mais fácil. A tecnologia só tinha vindo ajudar a Eternidade. 

 

 

Depois de o homem ter arrepiado caminho em direcção ao Céu, dirigiu-se novamente ao advogado:

 

 

- É a sua vez. Não me vou alongar. Tendo em conta que é advogado, vai para o Inferno - informou S.Pedro.



Depois disto, o advogado interpôs recursos atrás de recursos e até hoje não se sabe qual é a decisão.