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605 Forte

O meu Mundo frase a frase. Ironia e sarcasmo usados sem aviso prévio.

Autobiografia De Um Narrador

por F., em 23.07.17

- Estou cansado dos travessões e do discurso directo. Preciso de uma pausa. Preciso de alguém que descreva enquanto eu descanso. Alguém que saiba exactamente o tom com que digo as coisas e me interprete na perfeição - disse ele.

 

 

Nasci nesse instante. Omnisciente, certeiro e recluso. Durante anos mantive-me ao seu serviço. Quando ele precisava de uma pausa, aparecia eu e fazia uma descrição, um apontamento ou uma interpretação àquilo que estava a acontecer. Muitas vezes também o fazia em momentos de embaraço. Sobretudo em momentos de embaraço. Era uma forma de o fazer ganhar tempo. Foram anos a usar palavras como "disse", "explicou", "retorquiu", "argumentou", "anuiu", "exclamou", "murmurou", "assentiu", "sibilou", "atirou", "vociferou", "concordou", "discordou", "mentiu", "confessou" ou "sussurrou". De resto, essa foi uma das minhas principais tarefas: usar o verbo correcto para explicar a forma como cada um dizias as suas frases, evitando repetições.

 

Tudo tem um fim. Veio a crise. Sempre a crise. Ainda estive um tempo como narrador a recibos verdes, mas não compensava. Era um desrespeito pela carreira que construí. Decidi aposentar-me. Hoje em dia sou avô. Um bom avô. Ser narrador é a melhor preparação para se ser avô. Não conheço nenhum narrador (e conheço bastantes. Fui filiado no sindicato dos narradores) que seja mau avô.

 

 

Nunca ninguém conta a história de um narrador. A menos que seja o narrador a contar a sua própria história. Esta é a minha história. Uma história comum. Decerto não é digna de um livro, mas um post já será o bastante para tirar este narrador que vos fala do esquecimento. 


Assim passo os meus dias. A ser avô. Mantenho-me omnisciente, certeiro e recluso. Até ao último dia.